Revista Época
Fernando Abrucio
A política brasileira parece estar entrando numa nova fase, com o arrefecimento da crise do Senado. Para o futuro do país, é mais importante debater propostas de políticas públicas, pois, quando escândalos e denúncias dominam a cena, o jogo político acrescenta quase nada à vida da população. Mas nem todos estão preparados para essa mudança, uma vez que é bem mais fácil atuar segundo a lógica dos "mocinhos x bandidos" que enfrentar a complexidade da gestão pública.
Está aí um dos maiores desafios do século XXI: a gestão pública não pode ser entendida por reducionismos ideológicos e tampouco comporta respostas únicas. Ela envolve a conciliação de múltiplos objetivos. O Estado precisa produzir políticas públicas eficientes e eficazes, resguardando ao mesmo tempo o interesse público. A proposta do governo Lula de alterar o marco regulatório da exploração do petróleo é um bom exemplo para entender essa questão.
A regulamentação do pré-sal está gerando um grande debate, pois será peça- -chave na trajetória econômica do país nas próximas décadas. Deve-se evitar, portanto, que a discussão se resuma a falsas dicotomias, baseada nos seguintes enredos: a luta de nacionalistas contra entreguistas, segundo a versão governista; ou a disputa entre estatistas e defensores da livre-iniciativa, conforme a simbologia oposicionista.
Trata-se de um problema de gestão pública, que deve ser avaliado por critérios empíricos, não por suposições ideológicas. A ideia de mudar o modelo de concessão para o de partilha e mesmo a criação de uma estatal responsável pelo planejamento da exploração petrolífera não são, a princípio, ideias equivocadas. No que se refere ao primeiro aspecto, a justificativa certa para sua adoção é o maior controle do fluxo de extração e venda de petróleo. Um ritmo totalmente comandado pelos interesses do mercado - incluindo aí a Petrobras - poderia levar a graves desequilíbrios macroeconômicos, tanto do ponto de vista cambial quanto no que se refere à situação industrial do país. E aqui o interesse público de longo prazo é mais importante que os ganhos econômicos imediatos.
No que tange à criação de uma estatal planejadora desse processo, em vez de deixar o trabalho à ANP, também é possível justificar o novo órgão. Ele seria um formulador de políticas públicas de longo prazo, não regulador. Dizer que isso seria um desastre porque criaria um "cabide de empregos" é algo que valeria, em tese, para todo o Estado brasileiro. As raízes disso estão em falhas estruturais da administração pública. Sem reformá-la, todas as políticas públicas serão frágeis. Para evitar a reprodução do patrimonialismo no caso do pré-sal, será necessário estabelecer um forte modelo de controle sobre o novo órgão. Se for produzida uma boa solução aqui, ela poderá se tornar um exemplo para melhorar a fiscalização do conjunto do governo.
Do ponto de vista da gestão, o problema maior da proposta do governo é o ambiente anticompetitivo embutido nela, presente tanto no monopólio da operação como na obrigação de que a Petrobras detenha uma participação mínima de 30% em cada bloco explorado. A estatal melhorou muito nos últimos anos, porque teve de ser mais eficiente que as outras competidoras. O fim da situação monopolística estimulou parcerias importantes com empresas nacionais e estrangeiras, tanto no plano financeiro quanto no tecnológico. O pior de tudo é que a existência de uma única operadora dará um poder enorme à Petrobras. Desse modo, será mais difícil para o governo, mesmo com um novo órgão, controlar a estatal petrolífera numa situação sem competição.
Reforçar o poder estatal, como quer o governo Lula, não é nenhum pecado em termos de gestão. Mas o viés anticompetitivo será péssimo para a Petrobras, que se acomodará; para o Executivo federal, que ficará mais fraco em termos regulatórios; e principalmente para a sociedade, que, no caso do pré-sal, deseja que sejam compatibilizados os interesses de longo prazo do país com a busca da eficiência.
Fernando Abrucio é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA